Imagine”,
Miguel Sousa
Tavares, Expresso
Imagine um mundo em que quase um terço das emissões de CO2
lançadas diariamente para a atmosfera desapareceu de um dia para o outro: os
céus da China limpos da queima insaciável de combustíveis fósseis, a que se
junta a redução acrescentada pela queda brutal das viagens de avião e da
circulação dos imensos paquetes de passageiros, outrora um sinal de festa e
hoje a nova praga das cidades costeiras.
Imagine Veneza, Florença, Paris, São Petersburgo, Istambul
desertas de multidões de chineses, coreanos, russos; museus onde se pode entrar
e percorrer as salas: cafés onde se pode estar sentado; praças para onde se
pode olhar.
Imagine uma quantidade de gente com mais tempo para si, para
a família, para os amigos, com menos pressa para tudo.
Imagine gente a trabalhar a partir de casa, produzindo o
mesmo e gerindo o seu próprio tempo de trabalho, gastando menos, poluindo
menos, aliviando o trânsito.
Imagine que de repente desapareceu a febre do consumismo
supérfluo e que as pessoas se põem a pensar nas coisas que são verdadeiramente
importantes.
Imagine que um medo e uma apreensão global faz com que a
necessidade de se andar informado faça as pessoas afastarem-se dos pântanos de
intrigas e mentiras das redes sociais e regressem à informação de referência,
onde está o serviço público de que necessitam.
E imagine que, apesar do medo e da apreensão, porque somos
seres humanos, somos desafiados a enfrentá-lo, a resistir-lhe e a combatê-lo,
contra o egoísmo, o alarmismo e a irracionalidade alarve das massas, e a
portarmo-nos como seres humanos.
Isto, esta utopia, está a acontecer agora. Sob os nossos
olhos e graças ao coronavírus. A forma como nos comportarmos vai ser tão
importante, em termos de reflexão, como vai ser, em termos científicos, a forma
como o vírus for vencido. Mas, até lá, esta pausa, esta suspensão do mundo tal
como o conhecemos, já é um excelente tema de reflexão.
Claro que não é sequer pensável suster o mundo, como agora
está forçadamente, de forma permanente. A mudança teria de ser feita de forma
gradual, global e planeada. Mas também não é possível continuar a assentar um
futuro sustentável numa fórmula que se traduz em mais, mais e sempre mais, de
tudo: mais população, mais queima de resíduos fósseis, mais emissões poluentes,
mais contaminação dos oceanos, mais desflorestação, mais incêndios, mais aviões
nos céus, mais turismo de massas, mais agricultura intensiva, mais cidades
megalómanas.
Sabemos que temos de viver de outra maneira, mas não
queremos ou não acreditamos que seja possível. E porque não o será?
Miguel Sousa Tavares
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Odeio as almas estreitas, sem bálsamo e sem veneno, feitas sem nada de bondade e sem nada de maldade.Nietzsche
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