domingo, 19 de outubro de 2008
PUTA DE BUROCRACIA
Acordava com uma hemorragia. Chorava e gritava. Ninguém vinha. Uma vez por semana. Semana após semana um litro de sangue pelo nariz abaixo. Os lençóis manchados a vermelho. Era criança. Assim era uma das histórias sobre o seu passado que ele me contava apesar de dizer que não tinha amigos. Fomos colegas de liceu durante um ano. Viu-o a cuspir sangue às escondidas na sala de aulas. Alimentava-se mal. Era a tuberculose. Uma premonição dum desfecho precoce. O Conselho Directivo ficou alarmado ao saber que algumas salas estavam sujas com sangue agarrado à expectoração. Não o puniram. Exigiram que fizesse um rastreio. Nada acusou miraculosamente e continuou a frequentar a escola. Nos intervalos mostrava-me poemas de amor escritos em várias línguas dedicados a uma musa gótica: cabelos longos pretos, da cor das trevas, olhos azuis e verdes, voz de anjo e quase como em segredo acrescentava que o nome dela estava escrito em anagrama em cada um dos textos. Por vezes pegava numa faca e simulava que ia rasgar o coração- "é para ver se respiro melhor". Era reservado durante as lições, falava o mínimo possível, mas recordo que uma vez quando o nosso professor de inglês se desviou da matéria e lançou um desabafo retórico em assuntos religiosos- "Quem é que acredita nessas coisas, Céu e Inferno? Alguém por acaso esteve lá para dizer se existe?" ,ele levantou-se e interveio- "Eu estive lá, e digo-lhe que para chegar ao Céu tem que passar primeiro pelo Inferno. O meu Pai veio ao mundo para dar testemunho da verdade. Chegará um dia em que todos os mistérios serão revelados. Até lá conhecereis conforme és conhecido . O Pai conhece os corações dos homens. Se levantares uma pedra Ele está lá. Mostras pouca fé, mas está escrito: Bem-aventurados os que crêem sem terem visto."
Os colegas diziam que ele não regulava bem e que talvez estivesse metido na droga. As raparigas achavam-no bonito, mas também misterioso e estranho. Suscitava-lhes um misto de atracção e repulsa.
Na última noite ligou para uma linha de apoio, mas a psicóloga que o atendeu do lado de lá não o levou a sério porque ele ria-se ao fim de cada frase. Ela pôs termo ao diálogo "Este não é o espaço indicado para este tom de conversa. Com licença." (e desligou). Andou a vaguear algumas horas e pensa-se que foi nesse momento que ele escreveu num papel a frase que foi encontrada no bolso da sua camisa- LEMBRAS-TE DAQUELA NOITE TÃO ESCURA QUE TIVESTE MEDO POR NÃO VERES O ESCURO ? O corpo foi descoberto por um pescador às 6 da manhã junto da marginal emaranhado num arame farpado que impedia o acesso a um declive fatal. Alguém sugeriu que no seu estado perturbado ele quis correr em direcção ao mar, porventura para abraçar a lua, e teria confundido esta com o reflexo colocado nas estacas de madeira. Quando o viu ainda gotejava sangue e gemia.
Gemeu como gemem os amantes no acto do sexo: de prazer, de dor, de desejo, de morte.
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Odeio as almas estreitas, sem bálsamo e sem veneno, feitas sem nada de bondade e sem nada de maldade.Nietzsche
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