Era mais uma vez preciso safar-se e não há mais
eficiente maneira do que a de alterar a estúpida e brutal realidade das coisas,
usar como de uma arte essa extraordinária possibilidade que ele tão bem
conhecia quando ainda não sabia que a mentira pode matar.
A cinza do cigarro caiu em cima da almofada branca
deixando uma mancha que ficou a olhar. Agora era já tarde para tudo. Agora a
verdade, mesmo que a soubesse dizer, seria cruel, inútil. Nada, nem ninguém
poderiam impedir o caminho que conduzia à morte a pessoa que amava e o tinha
feito, sim, tinha sido essa a última vez, tentar mudar de vida e acreditar,
sim, fora essa a última vez, que as coisas iam correr bem. Mas não foi
possível. Talvez tivesse sido possível antes de se apaixonar, mas antes de se
apaixonar nem ele queria que as coisas fossem como não eram. Depois era já
impossível. Depois de se apaixonar, e ele conseguiu reaver da memória o lugar e
o tempo exactos, como numa fotografia, em que sentiu a paixão chegar e tomar
conta de si, depois já não podia dizer a verdade. Dizer a verdade seria
perdê-la, afastá-la para sempre o que não conseguia suportar porque a amava e a
solidão não parava de crescer, de o sufocar. De qualquer modo seria já tarde
demais, repetiu uma vez mais.
O que era preciso era continuar. Continuar a mentir o
mais perfeitamente, sem qualquer deslize, usando todos os recursos da
imaginação, mas agora sem o antigo prazer de derrotar a realidade, antes uma
angústia cada vez maior a crescer-lhe no peito, o que o obrigava a procurar a alívio
nos químicos que minuciosamente doseava, porque nada devia transparecer na sua
cara que o pudesse trair. Era preciso mentir sobre a mentira e continuar.
Sentia-se esgotado, mas a paixão fazia-o continuar. Se não há uma verdadeira
vida também não pode haver uma verdadeira morte. Se calhar teria sempre de
continuar. Este pesadelo fê-lo estremecer e abrir os olhos que julgava abertos.
Escurecera. Procurou o interruptor do candeeiro e uma luz azulada encheu o
quarto. Que horas seriam? Ela não devia tardar.
Levantou-se de um pulo, abriu as torneira do duche, foi
à cozinha buscar um copo de água e, de pé, engoliu quatro comprimidos. Ele ia
aguentar. Nada era verdade. A água corria. Ele tinha de continuar.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Odeio as almas estreitas, sem bálsamo e sem veneno, feitas sem nada de bondade e sem nada de maldade.Nietzsche
Deixa aqui algum bálsamo.