A casa frente ao videoclube vai ser abandonada. O que se puder salvar será transportado para outra casa. O que couber dentro de caixas, dentro de caixas: os livros lidos e por ler, os copos, as louças, os talheres. O que não couber dentro de caixas será transportado aos ombros de estóicos escravos: os quadros, o frigorífico, a máquina de lavar, os tapetes, as camas com os respectivos colchões. O piano, esse, voará pelo jardim. As coisas serão arrancadas do seu lugar, deixarão buracos, melancólicas falhas. A força da gravidade será, uma vez mais, cruelmente vencida. O que se não puder salvar ficará a habitar – sabe-se lá como e até quando - a casa doravante vazia. O que não se puder salvar é o mais precioso. As palavras - derrotadas e gloriosas - finamente sobrepostas camada sobre camada. Um gesto aflito e logo outro meigo. Uma perseguição pelos corredores da casa. O sono profundo do esquecimento. Os gritos misturados, tanto de dor como de prazer. E a semente do fogo. O fogo já lá estava desde o começo de tudo.
A casa
frente ao videoclube não devia ser abandonada. Devia ser arrasada, incendiada,
oferecida em sacrifício. Ninguém poderá narrar a história de uma casa que foi
túmulo de tantos desejos e insensatas ambições, antro de vícios e teatro de
prazeres, gruta e refúgio de desvairados poetas, inúteis seres. Uma casa que
ainda ouviu Píndaro falar em grego, onde se rezou a Jesus de joelhos no chão,
que foi roubada por ladrões encartados e outros menos peritos. Uma casa onde
alguns enlouqueceram e depois ficaram lúcidos e, outros, lúcidos enlouqueceram.
Onde muitos se embriagaram de vinho e fumos e poderosos licores. Onde alguém se
quis matar e não o deixaram. Uma casa onde a beleza era uma deusa antiga que
surgia quando bem queria e sob os mais variados disfarces: suave música,
excelentes versos, asfixiantes corpos nus de mulheres. Uma casa por vezes
assolada por ventos de desordem e tumulto - um espectáculo medonho - e depois
recomposta numa harmonia em que o resultado era atingido. Uma casa vertida em
lágrimas, atingida pela dor, e depois despedaçada por fortes gargalhadas em que
se fazia pouco da burocracia do mundo, da mesquinhez da multidão. Viva, e
depois morta, para de novo poder renascer quando menos se esperasse.
Asfixia
Não sou superior, supero-me.
Obrigado pelo abracinho...
ResponderEliminar