Absorve-me mas em várias fracções

domingo, 22 de julho de 2018

Pedro Paixão

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Era mais uma vez preciso safar-se e não há mais eficiente maneira do que a de alterar a estúpida e brutal realidade das coisas, usar como de uma arte essa extraordinária possibilidade que ele tão bem conhecia quando ainda não sabia que a mentira pode matar.

A cinza do cigarro caiu em cima da almofada branca deixando uma mancha que ficou a olhar. Agora era já tarde para tudo. Agora a verdade, mesmo que a soubesse dizer, seria cruel, inútil. Nada, nem ninguém poderiam impedir o caminho que conduzia à morte a pessoa que amava e o tinha feito, sim, tinha sido essa a última vez, tentar mudar de vida e acreditar, sim, fora essa a última vez, que as coisas iam correr bem. Mas não foi possível. Talvez tivesse sido possível antes de se apaixonar, mas antes de se apaixonar nem ele queria que as coisas fossem como não eram. Depois era já impossível. Depois de se apaixonar, e ele conseguiu reaver da memória o lugar e o tempo exactos, como numa fotografia, em que sentiu a paixão chegar e tomar conta de si, depois já não podia dizer a verdade. Dizer a verdade seria perdê-la, afastá-la para sempre o que não conseguia suportar porque a amava e a solidão não parava de crescer, de o sufocar. De qualquer modo seria já tarde demais, repetiu uma vez mais.

O que era preciso era continuar. Continuar a mentir o mais perfeitamente, sem qualquer deslize, usando todos os recursos da imaginação, mas agora sem o antigo prazer de derrotar a realidade, antes uma angústia cada vez maior a crescer-lhe no peito, o que o obrigava a procurar a alívio nos químicos que minuciosamente doseava, porque nada devia transparecer na sua cara que o pudesse trair. Era preciso mentir sobre a mentira e continuar. Sentia-se esgotado, mas a paixão fazia-o continuar. Se não há uma verdadeira vida também não pode haver uma verdadeira morte. Se calhar teria sempre de continuar. Este pesadelo fê-lo estremecer e abrir os olhos que julgava abertos. Escurecera. Procurou o interruptor do candeeiro e uma luz azulada encheu o quarto. Que horas seriam? Ela não devia tardar.

Levantou-se de um pulo, abriu as torneira do duche, foi à cozinha buscar um copo de água e, de pé, engoliu quatro comprimidos. Ele ia aguentar. Nada era verdade. A água corria. Ele tinha de continuar.




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Odeio as almas estreitas, sem bálsamo e sem veneno, feitas sem nada de bondade e sem nada de maldade.Nietzsche
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